Conversa de bode
IVIG FREITAS
Fortaleza, 2060. Depois das jaquetas autossecantes, dos robôs que levam cães para passear e dos skates que flutuam, eu lembrava: “no futuro, teremos carros voadores”. Olho pra cima e vejo o Sol abrir uma centelha no céu. O futuro chegou, mas a inteligência artificial ainda não havia encontrado a solução para a tradicional buraqueira das ruas da Capital Alencarina. Enquanto pensava nessas coisas, fui surpreendida por um tombo na calçada. Foi como despertar de um sonho dentro de um quadro de Marinetti.
Acordei na Rua São Paulo, esquina com a Praça General Tibúrcio, em outubro de 2018. A buzina raivosa de um Corcel 1980 me causou sobressalto. “Mais um dia normal no centro da cidade”, pensei comigo. Além da dor nas costas, não sabia exatamente como havia ido parar ali. Aproveite para flanar a cidade, coisa que tanto me agrada quando compadece. Olhei para o relógio e então decidi apressar o passo na calçada. O calor das duas da tarde já principiava a ferver meu juízo.
Enquanto era abraçada pelo vento forte que soprava da Praia de Iracema, notei uma movimentação incomum em frente ao imponente Museu do Ceará. De um ônibus parado, começaram a descer, uma a uma, mais de vinte crianças com farda colegial azul e branca. Crianças felizes, outras curiosas, e pelo menos outras três visivelmente chateadas com o passeio em lugar de velharia. Uma mulher alta e esguia falava:
- Pessoal, acabamos de chegar ao Museu do Ceará, primeira instituição museológica do Estado. Aqui vamos conhecer parte importante da nossa histó...
Ela não conseguiu completar a frase, sendo de imediato interrompida por uma voz impaciente que berrava de dentro do Museu:
- Mulher, deixe de arrudeio… Toda vida essa mesma lenga lenga de vocês. Ande, bota essa meninada aí pra dentro.
Na sala vermelha do Museu do Ceará, um herói acabara de despertar de seu sereno repouso. Boêmio e apreciador de uma boa aguardente, além de exímio conhecedor dos becos do Centro de Fortaleza, companheiro dos intelectuais em cafés noturnos e, ainda, metido a vereador: na sua irreverente qualidade de caprino, não cumpriu, mas também não prometeu. “Mas que o bode parecia ser gente, parecia!”, dizia o povo. Eu, que nunca tinha levado muito a sério essa anedota, comecei a mudar de ideia.
Diante dos meus olhos - e de outras tantas 25 crianças boquiabertas - o boêmio de quatro patas mais famoso da Terra da Luz, o personagem mais icônico do Ceará Moleque. Tão logo ele colocou as patas na rua, um bonde elétrico vinha fazendo barulho sobre os trilhos e parou diante do Palácio Senador Alencar. Iôiô interrogou o motorneiro que vinha:
- Andava por onde, velho amigo? Faz bem um século que não te via, né?
- Né mesmo, compadre! Anda tudo tão diferente por essas bandas. Quando vamos tomar aquela pinga?
- Vá lá pelo Java depois que o sol descer! Tem assunto pra mais de hora…
As crianças entraram no bonde, e, na primeira esquina, deram de cara com a Belle Époque Alencarina. Por onde passava, o bode era todo enxerimento com as moças. Na Praça do Ferreira, o caprino cumprimentou Antônio Sales, que olhava para seu relógio com impaciência.
Ainda passando pelas imagens de uma Fortaleza que o tempo levou, o bonde fez uma parada na Rua Formosa, hoje Barão do Rio Branco, primeira rua de Fortaleza a receber iluminação elétrica. “Foi um alvoroço só”, contava Iôiô. As crianças olhavam assustadas para os candeeiros e lamparinas, perguntando-se onde antigamente se encontravam tomadas para carregar a bateria do celular. Com todo seu fôlego caprino, o bode soltou uma vaia às crianças:
- Essa meninada de hoje não sabe mais o que é tempo bom!
Olhava fixamente nos olhos do Bode quando um barulho de crianças chegando à sala vermelha me despertou a atenção.
- Olha, tia! É o bode que tem no livro de história!
- Valha, ele se mexe??
- Tia, tia!! Pode pegar no bigode dele?
Despedi-me de Iôiô e desci as escadas do Museu, ainda pensando
no quanto somos feitos de histórias - as nossas, as dos outros, e as que encontramos por aí...