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Nirez

Hoje eu até brinco, quando encontro com um colega ou amigo a pessoa que diz “cadê, Nirez, quais são as suas novidades?”, eu digo “eu não sou homem de novidades, eu sou homem de velhidades.

Christiano

Câmara

Uma coisa que incomodava muito o papai, ele dizia: as pessoas chegam aqui, como já teve gente: “valha, é muita velharia”. Aí ele dizia, “a mesma pessoa vai para Europa chega no museu e diz, nossa, que antiguidade”. Aqui é velharia, na Europa é antiguidade.

Nirez
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Um homem de velhidades...

Na semiótica algo só é porque também não é. Se eu sou velho é porque eu não sou novo, e sou é porque algo em mim não é.  Na língua portuguesa o verbo ser é totalmente irregular, desde o seu radical até suas terminações, ele é inexato. Assim também é para quem vive do passado, para quem tu eras (pretérito imperfeito do indicativo), para quem tu serias (pretérito perfeito do subjuntivo), para quem tu serias (futuro do pretérito do imperativo)

 

Miguel Ângelo de Azevedo, conhecido por Nirez é um homem que vivia o presente através do passado e é assim que se configura sua história. O homem da antiguidade faz de sua casa refúgio para as raridades de um tempo  derradeiro.

Não há memória sem passado, nem futuro sem o presente. Nirez, que também é jornalista compreendia o valor dos vestígios do passado para a apreensão do hoje. Desde os cinco anos e idade ele se fez um colecionador nato ,“eu sempre gostei de coleção, quando eu era menino eu colecionava todo álbum de figurinhas, colecionava caixas de fósforo, colecionava carteira de cigarro, tudo eu colecionava”, conta.

 

Ainda cedo, o desenhista descobriu o valor da música para sua história, mesmo que ainda não tivesse dimensão do que se tornaria. Dos 5 para os 6 anos seu brinquedo era um gramofone, e que até hoje quando a melodia da canção toca ele recorda o aspecto do disco. No seu aniversário de 20 anos, em 1945, seu presente foi um toca discos, nessa ocasião ele começou a comprar discos e isso  fazia recordar as canções que ouvia quando menino.

"Em 1954 eu comecei a comprar esses discos de reedição, eu andava nas casas, olhava qual era e comprava… Até que chegou um dia que eu olhava e não tinha mais. Aí um dos vendedores, que eu não me lembro quem, disse: “Nirez, você faz o seguinte: agora você visitas as pessoas de casa de família, que eles compravam discos antes de você, e devem ter muitos discos que saíram de catálogo antes. Então consegui muita coisa assim, através de pessoas que tinham discos, que já estavam fora de mercado...Em 1958, que foi o advento do LP, todo mundo comprou um toca disco pra ouvir LP, e todo mundo tinha um interesse imenso de ter LP. Então o que é que eu fazia, eu ia na loja, comprava 5, 6 LPs, botava debaixo do braço e ia pra casa de famílias e trocava. Arrancava deles os discos de 78 rotações e trocava pelo LP".

 

E assim, o colecionador iniciou o caminho com as memórias do passado. Porém, mesmo tendo sua paixão ardente pelo antigo, a necessidade de algo novo se fez presente. Quando ele achou que já tinha discos demais começou a sentir o interesse pelos artistas que tinha nos discos,e assim nasceu uma biblioteca especializada. Mas, não satisfeito queria saber como era o rosto daqueles artistas, e foi pela curiosidade que começou a cair em suas mãos fotos de Fortaleza Antiga.

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Christiano

Aqui é antiguidade...

O centro da Capital é um espaço pulsante e plural. Há quem não entenda a fusão do vasto centro comercial da cidade com os  prédios históricos que resistem em memória da Fortaleza antiga. Por trás da imponente Catedral, na rua da escadinha número 162 existe uma casa estreitinha que em nada se assemelha ao estilo gótico romano do igreja. Mas, no seu interior este pequeno lugar conta histórias e estórias que reúnem a memória do brasileiro ao estrangeiro, um ambiente que merece dar aquela espiadinha.

 

Esse espaço guarda a vida de quem já não está mais entre nós. Christiano Câmara, que em 2016,  aos 81 anos deixou suas marcas registradas não apenas nas lembranças, mas em seu acervo vivo e pulsante para quem quiser reviver o tempo e encontrar e cada canto um pouquinho desse grande memorialista.

Desprovido de luxos, regalias e bens materiais, Christiano cultivava como riqueza os bens que guardava no interior de sua casa, o seu saber não foi regado em bases institucionais, o acervista só fez até o terceiro científico, sua sabedoria advinha de suas descobertas e leituras que fazia ao longo o caminho.

 

Nós só temos essa casa, papai nunca teve carro, papai nunca teve luxo, papai nunca teve sítio, papai nunca teve nada, nunca viajou para canto nenhum, porque tudo que ele tinha ele botava aqui”.

 

Toda essa história começou na década de 50 quando ele foi tomado pelo prazer de ouvir música, diferente de um outro colecionador da Capital, Christiano não fazia exceções em suas trilhas sonoras, escutava desde o MPB até canções internacionais. Entre compras e doações o acervo foi nascendo e criando forma. O que se conhece em números é um registro de contabilização da década de 60, em que o acervo continha aproximadamente 20.000 discos, hoje o que se sabe é que há 49 estantes espalhadas pela casa que acomodam os bens de seu Christiano, um curioso detalhe era a memória fabulosa do acervista, mesmo sem catálogo de nenhuma peça ele sabia exatamente onde elas estavam. Mas que fique claro, os números nunca foram algo de seu interesse.

 

"Uma coisa que incomodava muito o papai, ele dizia: as pessoas chegam aqui, como já teve gente: “valha, é muita velharia”. Aí ele dizia, “a mesma pessoa vai para Europa chega no museu e diz, nossa, que antiguidade”. Aqui é velharia, na Europa é antiguidade".

 

As “velharias” que compunha este acervo perpassa desde discos, livros, filmes e imagens, é um mundo para quem deseja se aventurar nas relíquias do passado, a exemplo dessas  raridades eram os pequenos discos de cera utilizados durante a Segunda Guerra Mundial. A casa que hoje protege todo o patrimônio do colecionador é um próprio espaço de memória, construída em 1919 por João Câmara (seu avô), em 2019 completará 100 anos .

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Poeira Danada

Essas pessoas que adoram juntar poeira... Por que elas gostam tanto de colecionar coisas antigas? 

No nosso videocast Fomos de perto conhecer os acervos que contemplam itens de verdadeiros guardiões da memória.

A memória

Memória - s.f. : faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos.

 

O homem das velharias sempre andava de braço dado com a saudade e fazia o passado se convergir com o presente. Christiano realmente salvava aquilo que para muitos era inutilidade, mas ao seu ver tinha valor e memória. O saudosismo latente em sua história ia para além de suas paixões pelas coleções, era expresso no cuidado e sensibilidade  destinado a sua família.

 

Leiquinha, na volta para casa ninguém se perde. Os olhos da afeição enxergam o caminho de volta. Dos teus pais Cristiano e Douvinha”.

 

A filha Zuleika relembra com brilho nos olhos as palavras do pai. “Mais triste do que ter saudade é não ter saudade” é uma frase estampada para quem quiser ver ao entrar dentro daquele museu vivo. Apesar de não estar vivo, a personalidade e o jeito de Christiano Câmara pulsa e reverbera dentro daquele espaço. A saudade foi um dos ensinamentos mais profundos que ele cravou em suas filhas, Zuleika sente saudades do convívio, do privilégio de que foi habitar com esse grande memorialista-historiador-acervista.

 

Ele foi uma pessoa que soube viver, ele soube existir e ele soube passar isso para a gente também”.

 

A ausência branda e tranquila que Christiano deixou é de alguém que soube desfrutar de si e do universo que o cercava. O homem das velharias unia passado ao futuro, sensibilidade e veemência. Sua casa foi espaço de aconchego, estudo, pesquisa, e descoberta. Para quem vive, para quem vai e para todo o seu acervo, Christiano foi um homem que impregnou muito bem  verbo acolher.

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